Contos

Conto 1 

“Era uma tarde fria. Tão fria que deixava a ponta do nariz gelado , e a pele levemente rosácea. Não queria conversar com muitas pessoas sobre o fato de não namorar mais o homem que ela considerava ideal. Tinha medo que rissem do tamanho buraco que aquilo fizera em sua alma. Mas , tinha alguém , com quem realmente ela podia contar e conversar. Entrou na sala de aula com a mesma fisionomia que entrou no começo do ano letivo: séria porém com ar levemente convidativo. O professor sorriu para a futura escritora. Ela sorriu de volta , e enrolou uma mecha de cabelos louros nos dedos , pensativa e preocupada. Percebendo que uma de suas alunas mais brilhantes estava franzindo o cenho, o professor fica preocupado.Ele gostava do que ela escrevia. Era uma canção de ninar , que adormecia a sua alma , e a embalava nos sonhos mais profundos e insanos possíveis. “ O que houve , está tudo bem?” “ Está , professor. É só que… eu e o meu namorado terminamos” – Ela disse com os olhos castanhos exuberantes marejados de água. “Podemos almoçar mais tarde?” “ Sim , claro.” – E discretamente ela colhe aquela lágrima que estava prestes a cair. No final das aulas , ela encontrara-se com ele no restaurante de sempre. Ele a ouvia com muita atenção , e acenava a cabeça , concordando com ela. Mas com ares de quem tinha um pouco mais de experiência , portanto , o leve sorriso no canto dos lábios. “ Mas qual seria o motivo da graça?” “Nenhum , senhorita emburrada , é só que do jeito que você está falando que esse vai ser o seu último namorado.”
“ Mas vai! É sério , depois do que me aconteceu , não quero saber de rapazes tão cedo…” Ele a olhou atentamente. Os lábios avermelhados e carnudos se mexiam freneticamente. Mas como ela falava! Ele pensava. Mas não se importava. Gostava de vê-la falando , e principalmente , de ouvir o que ela tinha a dizer. Mas algo a mais desviava sua atenção : Os olhos. Parecia que por detrás daqueles olhos joviais , havia uma alma antiga , sábia , que parecia suportar a dor do mundo inteiro , mas ao mesmo tempo , prender quem o fitasse por muito tempo. Prender de uma forma muito , muito interessante… Era uma prisão prazerosa , a ponto de você não querer mais olhar para lugar nenhum. Eram os olhos mais bonitos que ele jamais vira. Claro que ela era sua aluna. E ele sabia que haviam limites. Mas não dá para negar que ela era linda. E rara. Por um segundo , ele queria que ela fosse mais velha , para poder ter a chance de tê-la por perto. Tocá-la. Tocá-la como um homem toca uma mulher. Tocá-la no coração. E fazê-la entender… Que encantamentos e desencantamentos ao longo da vida acontecem. São os percalços vãos pelos quais temos que passar , com venda nos olhos , é verdade , mas que no final , se seguíssemos nossos instintos e razão , perceberíamos que tínhamos feito a coisa certa. Na volta do restaurante , depararam –se com uma tempestade. Ela ria, até se esquecera da dor. E ele ria também. Ambos ensopados. “ Eu moro longe daqui , como vou fazer pra voltar pra casa?” “ Vá para minha casa até a chuva se acalmar , essas tempestades costumam ser passageiras.” “Tem razão. Onde é sua casa?” “ Por aqui.”
Seguiram por uma ruela escura e boêmia. Ele morava em um prédio feio por fora. Mas até que por dentro , a casa era espaçosa , e confortável. E tinha cheiro de lar. É , cheiro de lar. Cheiro de canela e temperos vários. Ela sorriu para ele. “ Muito obrigada por ter me deixado entrar.” “ Imagine. Quer um chá , um café?” “ Eu aceitaria um chá , obrigada.” “ Só não abuse hein?!” “Eu , abusar? Que mau juízo você faz de mim!” “ Hum.” Disse ele tentando segurar o sorriso. Ela andou pela casa , a procura de mais amostras da personalidade misteriosa de seu professor de Literatura. Viu discos bonitos de Chico Buarque e Paulinho da Viola. Ele era um boêmio nato. “ Não sei se essa chuva vai passar, acho melhor ligar para minha mãe avisando que vou dormir na casa de uma amiga.” “Melhor mesmo , estão avisando aqui na rádio que está previsto para ser assim até amanhã.” “ Mas , onde eu vou dormir?” “Você pode dormir na minha cama. Eu me viro no sofá.” “ Ah , que gentil. Se eu recebesse em minha casa uma mulher tão bonita quanto eu , também daria minha cama para ela dormir.” Ela disse rindo , e desfilando pela casa , imitando uma modelo. “ Pois sim.” Fez ele cara de ofendido , e recolheu as chícaras de chá. “Pronto. A minha mãe está avisada.Então , caso eu não estivesse aqui a te atrapalhar , o que você faria?” “ Provavelmente eu tomaria um banho.” “ Ah , nesse ponto devo concordar com você , o calor está insuportável!” Disse ela rindo. “ Tudo bem , porquinha. Só toma banho no calor então , é isso?” “Ei , não foi o que eu disse!” Ambos riram. “Posso tomar um banho?” Disse ela , poucos minutos depois do ataque de risos. “ Pode , claro. Na segunda porta à esquerda.” “Já sei onde é , fui lá ver suas coisas.” “ Ei! Sua abusada” Disse ele risonho.
Ela caminhou para o banheiro. E enquanto estava tomando banho , ele quis arrumar o quarto para que ficasse tudo pronto , para a hora que ela quisesse se deitar. Então , percebeu que a porta do banheiro estava entreaberta , e que a porta do quarto dava para lá. Então , ele a viu. Realmente , era uma linda mulher. A água caía-lhe pelo corpo esguio e magro , fazendo-lhe uma carícia. Os seios não eram fartos , porém eram maduros , como se estivessem a procura da carícia de uma mão masculina. E curiosamente , ela tinha um conjunto de três pintas na barriga. E ele admirava suas formas de maneira a venerá-las. Como um ser poderia ter sido desenhado tão perfeitamente? Desenhada magra para caber-lhe nas mãos , para poder sentir cada centímetro do corpo dela , mas ao mesmo tempo com uma alma gigante , que parecia que ficaria eternamente tentando desvendar o que tinha por detrás daqueles olhos acanhados. Ele não conseguia desviar os olhos. Será que estava desejando sua própria aluna , com metade de sua idade? Se a cidade soubesse daquilo , com certeza seria exilado , e morto. Mas , dezessete anos já pode sim , ser considerada uma mulher. Ainda mais ela , que tinha a alma tão cheia de cicatrizes , mais ainda do que ele. Ele percebia aquilo , devido aos olhos acanhados. Ele olhava para o sorriso dela enquanto tomava banho , e fechava os olhos , deixando a água cair fartamente nos cabelos e no rosto. E ela abriu a boca , se engasgou , e riu de si mesma. Ele riu também , baixinho. E pensou , como podia , tipos desprezíveis deixarem tal moça chorar , certas vezes. À noite , quando estava deitado no sofá , ela apareceu. 
Estava linda.
Usava uma camiseta antiga dele , dos Ramones. Era tão grande que se transformara em um vestido. Os cabelos dela estavam presos , e ela estava com aqueles olhos… Os olhos. Sim , de tão bonito , são quase um acessório. Ele poderia vê-la nua , que ela ainda assim pareceria ter algo a mais , seriam os olhos. “ Eu não consigo dormir.” “ O que quer fazer , então?” “ Não sei , posso deitar no seu colo?” “Er… Pode…” E então ela se deitou e ficou contando histórias a noite inteira. Ele ria , mas vez ou outra se distraía da história porque sentia-a perto demais. Tão perto que ele podia sentir seu perfume. Uma mistura de óleos essenciais , que ele não sabia explicar. Era forte , mas ao mesmo tempo doce. Não sabe até hoje se era o cheiro do perfume , ou o cheiro dela , o cheiro que vinha de dentro dela , do coração. Eles riram , comeram brigadeiro , e agiram como um casal de verdade. Ela começara a sentir-se atraída por ele. Ele tinha olhos que se fechavam quando ele ria , e o sorriso era o mais aberto possível , sempre sorrindo. Mas ela pensava que ele nunca fosse olhar para ela de tal forma. Claro que não. Por um momento ela se esqueceu de quem lhe causara tanta dor. E pôs-se a prestar atenção no professor. Ela dormiu no colo dele aquela noite. Ele não pregou o olho. Queria tê-la assim sempre. Até que deixou-a dormindo , e foi desenhá-la. Pois sim , desenhava. Era um hobby na verdade. Colocou o cigarro na boca ,e passou a esboçar um pouco as feições dela. Gostava da ideia de poder recriar imagens que vinham à cabeça , achava interessante. 
É menos cru do que fotografia , apesar de que , se tirasse uma fotografia dela , também se daria por satisfeito. Não existia nada que ele pudesse reproduzir de sua mente , que pareceria um anjo de Botticelli , assim como ela parecia quando estava dormindo. Suas formas apareciam através da camisa. A blusa estava um pouco caída , e dava para ver o sutiã. De rendas , com ramos de flores. Era interessante. Ainda sim ela transpirava um femme fatale que era muito mais bonito do que essas mulheres que posam com as mais bonitas lingeries , que mais mostram do que escondem. Quando estava começando a amanhecer , seu esboço se transformara em um bonito desenho. Quis guardar com carinho. Abriu um livro qualquer para colocar seu desenho , coincidentemente o livro era Dom Casmurro , e continha tal passagem: “Capitu olhou para mim de um modo que me fez lembrar a definição de José dias, oblíquo e dissimulado(…)” Pois era o melhor livro para colocar o desenho de sua Capitu loira , angelical , e diabólica ao mesmo tempo. Era o esconderijo perfeito , o livro estava escondido na prateleira , jamais ela prestaria atenção nele. Finalmente o sol despontou no céu. Pintando-o de várias cores diferentes. Enquanto olhava ,admirado para o céu , ele sentiu certa presença ao seu lado. Alguém o abraçara por trás e dera-lhe um beijo na bochecha. Era ela. “ Está acordado há muito tempo?” “ Não , só o suficiente.” “ Suficiente?” “É. Gosto de acordar cedo para ver o modo como Deus pinta o céu.” “ Isso é tão… poético. Até parece eu. Vejo poesia em tudo , principalmente quando estou triste. Tristeza faz arte.”
“ Não é bem assim. Acho que só a tristeza é capaz de nos fazer perceber as outras coisas. Por exemplo , quando você está feliz , você se torna um pouco egoísta , é normal. Deixa de prestar atenção nos outros. Mas a tristeza , essa sim , faz você sentir ao mesmo tempo a sua dor , e a dor do mundo. O que faz seu coração ser grande o bastante para expurgar essa emoção para o papel.” “ Lindo , lindo. Nem sei o que você faz ainda lendo essas porcarias que eu escrevo. Se eu fosse você , teria ido para o Centro , mostrar suas poesias , e ser rico.” “ Sinto-me bem aqui , não quero ir embora.” “ Seria uma perda muito grande para mim , mas acho que o sonho de qualquer um é ser rico , ter uma vida estável.” “ Bobagem. Sou um homem pacato, mas ao mesmo tempo não quero pouco. Quero ser feliz todos os dias. O que é muito , muito mais difícil do que ser rico.” “É verdade. Então , posso dormir mais uma noite aqui?” “ Pode , mas , por que?” “ Não sei , gostei daqui. Me senti bem , de verdade.” “ Poder você pode , mas , e a sua mãe?” “ Minha mãe não se importa tanto assim… Avisarei a ela que passarei mais uma noite com essa ‘amiga’ e para ela , é indiferente. Vou até minha casa pegar algumas roupas e livros , já volto , quer que eu passe no mercado?” “ Não , isso não é necessário. Você é minha convidada. Eu mesmo passo lá no mercadinho , enquanto você está fora e compro os ingredientes para meu famoso macarrão.” “ Hm , quero só ver se além de boa pessoa , você também é bom cozinheiro!”
“ Sou sim , pode apostar.” Então , ambos seguiram. Ela foi para casa , e ele , para o mercado. Quando ele voltou , estava tudo desligado , e calmo. Mas ele viu uma mala no chão. Chamou por ela , mas ninguém respondia. Ficou preocupado , e adentrou a casa um pouco mais. Nem sinal. Finalmente ela aparece. Estava linda , e com um olhar mais bonito ainda. Estava com um vestido vermelho , de veludo. Com grandes botões pretos , e o rosto estava levemente maquiado. Ele não sabia se a agarrava , ou se simplesmente a admirava de longe , como sempre fez desde então. “ Vi seu desenho…Bonito.” “ Me desculpe… Eu não deveria ter te desenhado. Mas é que , você tem formas tão bonitas…” Disse ele , se aproximando dela. “ Seu rosto é de uma textura que eu não pude transmitir para o papel com exatidão. É aveludado , não , minto. É uma textura única…Difícil de explicar.” Disse ele tocando-a o rosto. Enquanto isso , ela fechava os olhos , e sentia-se tocada. “ Por que nunca me contou que era apaixonado por mim?” “ E-eu não sou apaixonado por você.”
“ Ah , não?” “ Não é bem apaixonado , eu diria , encantado.” “ Encanto e paixão são sinônimos.” “ Não são , não. Paixão é quando você tem desejo pela pessoa , desejo em tê-la por perto. Desejo é quando você tem desejo , ué , desejo normal…” “ Não entendi , explique melhor.” “ Nã-não tem o que explicar , por favor , pare de me deixar em uma situação pior do que eu já estou. Você tem o dobro da minha idade.” “ E daí? Sente. “ Ela aproximou a mão dele de seu corpo , e a fez deslizar em sua barriga , em direção aos seios. “Pare , por favor.” Disse ele não acreditando que aquilo estava acontecendo , e com uma vontade enorme de agarrá-la. “ Tá bom , é isso , eu não sou boa o suficiente.” “ Hã? Como assim , você é perfeita… Perfeita demais. É difícil de acreditar que tamanha perfeição existe.” Ela sorria , triunfante. E ele percebeu que mais uma vez , havia fracassado em sua mentira. Mentira para fazê-la acreditar que ele não a desejava. Aquilo era quase um sacrilégio contra si próprio , era contradizer um desejo de seu corpo , era como se contradissesse sua própria respiração , ou vontade de ser feliz. “ Mas , veja bem , sou seu professor. É perfeita , sim. Mas eu não te desejo da forma que um homem deseja uma mulher.” “ Ah , não?” Ela cuidadosamente abriu o primeiro botão do vestido. Depois o segundo , o terceiro , o quarto. 

     Até que o vestido se abrira , revelando uma lingerie preta , de bolinhas brancas. Delicada e sensual. Como deveria ser. Ele tentou se conter , olhar para baixo , para os lados. Mas ela tirava sua capacidade de discernir o certo do errado , e ele sabia. E ela sabia. Quando ele foi ver , estava beijando-a , sem pensar muito. Hemingway dizia que um homem só havia encontrado a pessoa certa , se ao beijá-la , ele perdia completamente o medo da morte. E ele sentiu isso. Sentiu de perto. Foi um misto de emoções tão forte. Primeiro ele cuidadosamente tirou seu sutiã. Tocou-lhe os seios , com cuidado, que ficaram eriçados. Com suavidade. Passou-lhe a mão na cintura , deslizando , como se estivesse lendo a mais bela poesia , só que com as mãos. Tirou-lhe com cuidado a calcinha , e fez dela mulher. Ali , na sala de sua casa. Não , ele não a fizera mulher , ela já era. Em meio àquela mistura de aromas , ele esqueceu que amor não tem idade , nome , endereço. Amor é um sentimento avulso , e nós que insistimos em nomeá-lo , criar sintomas , ou inventá-lo. Amor surge , não é imposto , e muito menos mendigado. Enganar o coração então , é coisa para poucos. Quando se gosta de alguém de verdade , e seu corpo deseja cada centímetro daquele corpo , não consegue mais pensar em mais nada. Quando você consegue encontrar uma pessoa que faça isso com você , que faça seu sangue ser bombeado em um ritmo charmoso , ou faça com que seus olhos veja coisas nunca dantes vistas , ou sua língua , sem querer falar coisas que você nunca pensou em falar antes para alguém , só essa pessoa é capaz de estragar o mundo quando parte. Mas , não há motivo para com o que se preocupar. Amor acontece , amor É. É um estado , um jeito , um motivo , uma risada , um encontro , um desencontro. Tudo é amor. E ele acontece a cada hora. É quase que um crime dizer que jamais amará da mesma forma , claro que amará! Seu coração simplesmente estará mais calejado. Mais calejado , e cicatrizado. Somente um coração machucado é capaz de amar da maneira mais pura ,e intensa. Pois , apesar de ter se decepcionado uma vez , ainda foi capaz de se entregar novamente. Então , cada vez será uma entrega , uma cura , uma nova imersão em um mundo onde a poesia é lida com as mãos , e as verdadeiras emoções são sentidas não só pelo coração , mas pela alma.”




 CONTO 2 
Amor, não sei lidar mas posso lhe dar
Surgindo da escada , ela estava com um vestido verde rajado de cores. O verde parecia ter escorrido dos olhos , e as cores , da alma. Era uma alma colorida.Era loura, com olhos sempre acesos e com sorriso no rosto para disfarçar a tristeza da alma. E isso não era nenhum clichê. Ela estava acostumada a não demonstrar muito a dor que sentia, com medo de ser repetitiva , de ser chato...Afinal , todo mundo superava tão rápido! "Deixa de ser boba, era um namoro de dois adolescentes", ela ouvia. Mas ela só sofria com toda a força do mundo porque amou com a força de uma daquelas estrelas cadentes que despontam no céu, ansiosas. Amava com toda a força ,e muito antes já haviam lhe dito que o sofrimento que se tem é proporcional ao amor que se teve/deu. 
Dançava pelos bares da cidade, dançava nas festas, abraçada com alguns rapazes. Dava alguns beijos , nada muito sério. Ou sério só quando ela queria fugir um pouco da morbidez sentimental que se encontrava , fugir um pouco da solidão , só para brincar de amar mas sabendo que já tinha ido embora da ciranda há tempos. 
Naquele dia , 6 de outubro , era um dia especial. Ela não sabia , e nem ele. Ambos acordaram , tomaram café da manhã , e foram viver suas respectivas vidas. Sem saberem , afinal , que a linha da vida de cada um se encontraria e se transformaria em um nó difícil de desatar! Ela , é claro , estava ansiosa. Gostava daquele ritual de tomar um banho caprichado, se embonecar , se maquiar , perfumar, vestir. Queria ser bonita. Já era , mas ela gostava de se olhar no espelho e pensar o quanto era linda e o quanto queria mostrar isso para o mundo. Usava um vestido verde rajado de cores , um salto moderado. O vestido era igual a sua alma, na frente era fechado , conservador. E atrás , em suas costas , era decotado com um caimento belíssimo que descia macio pelo corpo. Era assim , aquela inusitada moça. Aparentemente difícil de encontrar algo que a prendesse assim , a ponto de ela tirar um pouco aquela máscara de sorriso e mostrar-se com as costas nuas , com tecido macio descendo pelo corpo. Difícil era. 
Marcou de encontrar-se com algumas conhecidas na casa da aniversariante , de lá partiriam para a boate , em copacabana. Cenário de contos e cenário também de vários amores , ela pensava assim que chegou. Muitos escritores escreveram sobre aquela calçada, contando das moças que andavam por lá de dia , a se rebolarem com os biquínis - que eram um tabu - e com seus chapéus, ou então dos rapazes bem apessoados que andavam a espera de encontrar alguém para chamar de alguém , ou então só mais uma para encontrar. Muitas declarações de amor feitas às pressas , de homens correndo ávidos por aquela coisa misteriosa chamada amor , ou então ávidos pelo perfume que a amada deixava quando andava pela calçada. 
Chegando à casa da aniversariante , foi para o quarto onde estavam se preparando as outras moças. Todas lindíssimas , disso não há dúvidas. O que ela reparou que a deixou desconfortável foi no tom da sombra , que era escuro, quase preto , cor de chumbo...Deixava o olhar mais 'sedutor' , uma delas disse. Ela sorriu concordando. Mas olhando para o espelho que estava ao lado da cama , reparou que a dela era dourada e bronze , para contrastar com os olhos , que tinha um quê de mel e verde , bronze , e todos os sentimentos do mundo inteiro. 
Se sentiu um pouco desapontada. Gostava muito de ser diferente , mas não naquele dia. Não naquele momento. Estava insegura sobre quem ela era , e queria muito estar igual a todos na multidão.Confundir-se.Camuflar-se. Queria ser um pouco esquecida , essa era a verdade. A existência dela era um fardo , e pesado. Pesado demais para seu coração que precocemente batia desapontado com o mundo afora. 
Daí quis sair um pouco do quarto. Por isso e também porque o cheiro de spray para cabelo estava enjoando-a. Foi para a sala , onde estavam os rapazes. Conhecia um apenas , que estudara com ela no primário. Não mudou muito. Ela ria-se , mordendo os lábios "como pude um dia já ter gostado disso?". Ao chegar na sala , percebeu que estavam olhando para ela. Sorriu para todos , sendo simpática e cordial. Máscara social , já ouviram falar? Chegando ao sofá , viu que tinha um menino muito branquinho e com as bochechas rosadas. Achou-o fofo. Não era o gênero de meninos que ela normalmente gostava de beijar. Era um menino com beleza delicada , quase angelical. Ele sorriu fechando os olhos, e ela sorriu receptiva. Começaram a conversar. 
Ela sentiu uma coisa boa quando o viu , não entendia muito o que era. Mas ela confiava no sexto sentido dela mais do que nos outros cinco. Era simpática e procurou ser educada. Mas havia acordado tão cedo naquele dia , para estudar para os exames que só conseguia pensar o quanto estava cansada. E o menino fez ela se sentir a vontade. Então , do nada , ela disse 'estou cansada'. Ele riu e perguntou por que.Ela explicou o motivo e ele a chamou de maluca , ambos riram. E ela repetiu que estava cansada mais algumas dez vezes , ainda na sala. E ela achou o máximo quando ela disse 'é , isso é legal sim , mas eu estou(...)' , ele prontamente a interrompeu e disse 'cansada?'. Ambos riram , novamente. E ela se sentiu a vontade. Gostava quando as pessoas desvendavam algum pensamento dela , por mais óbvio que fosse , porque normalmente diziam que ela era difícil de se entender, então quando alguém adivinhava coisas óbvias ela se sentia menos aquele quebra cabeça de milhares de peças que tanto falavam. 
Todos prontos , caminharam para a van que os levaria à boate. Pensando ela com ela mesma , não deveria ter ido. A menina que estava fazendo aniversário nem era tão próxima dela. Mas foi convidada por uma outra amiga , que não queria ficar lá 'sozinha'. Foi para fazer companhia e esquecer do mundo por alguns segundos , em algum lugar, longe de toda aquela cobrança para que ela ficasse melhor. Longe de todos aqueles olhares com pena. Longe de toda aquela dor. Longe dela mesma. 
Entrou no carro e sentou-se ao lado de duas meninas muito divertidas que estudava com ela. As duas meninas na frente colocaram funk para tocar e começaram a cantar junto. E ela sentiu que esse era um daqueles momentos que ela não vai se esquecer quando for mais velha. Todos cantando , alegres , celebrando a vida , a despeito da morte, celebrando a juventude e tomando - sem a menor vergonha - o cálice de ânimo e vida que cada um tinha dentro de si. Era relativamente distante , a boate. Ela deitou a cabeça no banco e ficou olhando para a estrada que passava rapidamente pelos seus olhos. Ela gostava tando de olhar a estrada passando através dos olhos dela. De alguma forma insana parecia que era a vida dela que passava diante dela , parecia que ela tinha clicado no botão 'next' da vida , e estava agilizando as coisas para a parte em que ela seria feliz novamente. Olhando distraidamente viu um letreiro , em um dos arranha-céus da cidade , TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO. Sorriu , inevitavelmente. E pediu para Deus , baixinho , atender aquele pedido tão humilde e ainda assim tão urgente. E se prometeu que em breve estaria ali. Ela se achava diferente dos outros , e era. Desde quando alguém normal pediria isso para Deus sendo que estava indo para uma boate? Mas ela não sabia separar. Os sonhos dela faziam parte dela , em qualquer lugar que ela estivesse. 
Cansada , tentava acompanhar o ritmo das pessoas que ali estavam , o ritmo das risadas , o ritmo dos assuntos. Ninguém ali tinha culpa de que ela havia acordado às 3 horas da manhã. E ela sabia. 
Chegando à boate , viu o grupo de conhecidos reunidos em frente pois não tinha aberto ainda. Conversavam , e ouviu o menino das bochechas rosadas dizer para uma das amigas dela que iria falsificar a identidade (assim como ela). "O segredo da mentira é a confiança", ela achou aquela frase um tanto óbvia , mas gostou de perceber que tinha alguém que pensava a mesma coisa que ela. A amiga dela era muito distraída e teve dificuldades para guardar a tal frase. Daí a amiga disse "O segredo da confiança é..." , e os dois , juntos , com uma simetria invejável "Não , é o segredo da mentira é a confiança". Àquela altura ela estava achando no mínimo estranho aquele conforto que ela sentia perto dele. Como se o coração tivesse sido amortecido de alguma forma. 'Era o ambiente diferente' , pensou consigo mesma. Mas do nada se viu rindo , esquecendo nem que fosse por uma noite tudo aquilo que a fazia enlouquecer aos poucos. 
Esperando a boate abrir muita coisa foi desvendada ali. Ela começou a conversar com o menino branquinho das bochechas levemente coradas. E achou estranho. Eles falavam e ela tinha um desejo estranho de que aquela conversa durasse para sempre , pois amortecia e muito os pensamentos ruins que ela tinha. Por um momento ela foi ela mesma , rindo , se divertindo , contando sobre a vida dela. E ela percebia que os olhinhos dele se alarmavam e denunciavam o quanto ele queria continuar conversando cada vez mais. Ela mal sabia , também , que desde a sala ele a observou com os olhos em brasa , fitando-a , observando seus movimentos delicados , e a maneira descompromissada como ria. Ele fitou os olhos dela e achou-os tão lindos , queria ficar um tempo observando-os , mas não poderia mergulhar naqueles olhos tão rápido. Assim como ela , o coração dele também estava magoado , e assim como o dela , queria abrigo. Abrigo do acaso. Abrigo da sorte. Abrigo para encontrar alguém que fizesse a vida dele entrar no compasso que sempre foi. Ele queria estar na mesma ciranda que ela também queria estar. Ele só não sabia disso ainda. Estava feliz , sim. Diferente dela , ele lidava com as dores da maneira trivial : Festas , bebidas, amigos , futebol , meninas. Tudo para esquecer. Para se fazer esquecer. Já ela pensava que só se esgotava uma dor vivendo-a intensamente. Mas os efeitos colaterais de tal ato súbito de coragem a fazem sentir triste até hoje. 
E os dois conversavam com uma sintonia tão estranha que todos que estavam presentes a espera da abertura da boate , estranharam. Mas eles não. Parecia que ambos , quando conversavam , entravam em uma bolha. Desligavam o botão do mundo. E só tinha os dois. E eram conversas sobre os assuntos dos mais variados , foi uma bela maneira de inaugurar aquela noite. Ele contou que traiu a namorada. Ela por um momento se sentiu vacilante. Porque estava começando a pensar em beijá-lo. E sim , não estava programado para aquela noite.  Ela só tinha certeza que se não o beijasse aquela noite , se arrependeria. Não porque ele era uma graça , e quando sorria fechava os olhinhos complacente. Mas porque ela sentiu que poderia dar uma chance a si mesma de novo. Ela queria saber como era, de novo , beijar alguém que ela tivesse o mínimo de afinidade. Não queria grandes promessas , ela só queria beijar a boca de alguém depois de ter beijado a alma. Disseram que o gosto era sempre melhor. 
A espera da abertura da boate , ambos seguiram para um quiosque ali perto pois ela, além de cansada , estava com muita fome. Ela disse alguma coisa do tipo 'Eu não sei porque , mas as vezes me sinto estranha'. E logo quis dar um tapa na testa! Isso lá era assunto para ser tratado com um rapaz que ela mal conhecia (por mais que não parecesse) e ainda mais em um ambiente tão agradável de se conversar sobre trivialidades? Ela e suas questões existenciais. Não largava tal vício. Esperando no mínimo uma careta dele de estranheza ou descaso , ela foi surpreendida 'você é diferente das outras meninas , de verdade'. Daí ela com aquela resistência habitual ao ser elogiada , disse 'não , não sou'. Ele confirmou o que ela queria ouvir , com a voz mais sincera do mundo 'sim , eu te acho diferente, pelo menos. Dessas menininhas que eu conheço.' 
Ele estava era bobo com a beleza dela , e não é uma beleza meramente física , era uma beleza diferente. Todas as moças que estavam acompanhando a aniversariante estavam lindas, assim como ela. Mas ela estava...Com uma aura boa. Uma alma colorida. Era estranho. Ele queria poder contar para alguém tamanho era o espanto dele pois a menina o surpreendia das maneiras mais inesperadas possíveis. A cada assunto , a cada sorriso , a cada opinião formada. Ele desvendava pedaços da cabeça maravilhosa que ela tinha , e sem perceber colava alguns pedaços do sorriso dela , que ela havia perdido há muito. 
Ela ficou indecisa com relação a que pedir , e decidiu por não pedir nada. E logo depois se corrigiu mentalmente. 'Caramba , como você quer beijá-lo sendo assim , tão estranha? O garoto vai sair correndo de desespero, você vai dar um nó na cabeça dele.' Pois é ,ela sabia que tinha feito algo errado. Mas ficou esperando a reação dele , que não poderia ser melhor. Ele sorriu e entendeu prontamente. Ela não entendeu porque ele entendeu ela prontamente. Muita gente não fazia isso há muito tempo. Pessoas que ela conhecia há anos,conhecidos. 
Ela gostou de tê-lo conhecido , pensou. Seria um ótimo amigo depois daquele dia. Mas , naquele dia , ela queria ver como seria beijá-lo , apenas para saber. Para testar. Brincar. Ser feliz. Ela se sentiu um pouco cinderela. Sabia que aquela felicidade paralizante e mágica duraria apenas uma noite , no máximo até o dia amanhecer. Depois ela voltaria à vida dela de gata borralheira com todos os tormentos, e livros a serem lidos.  
Já dentro da boate , ela ficou conversando com ele por mais algum tempo. Mas logo depois viu-se puxada por uma das amigas da aniversariante. 
"Vem cá , larga um pouco esse menino , já estão todos comentando , vocês não se largam mais não? Fica aqui comigo!" 
Ela sentou com as meninas. Riu, se divertiu. Mas logo depois o tédio tomou conta. "Ah , mas estava tão legal o assunto!" pensou consigo mesma , furiosa. Não conversar com ele era embarcar em um tédio imorredouro. 
Logo depois , ele a puxou pela mão e disse 'Vamos dançar?' 
Ela se levantou e prontamente atendeu ao pedido. Começaram a conversar animadamente de novo , como se nunca tivessem sido interrompidos. Como se estivessem sido colocados de novo no ritmo da conversa , e simplesmente se deixaram fluir.Juntos. 
A menina disse,rindo da situação, mas ao mesmo tempo insegura  "Estão achando que hoje nós vamos 'ficar',você acredita?"
"Mas...teria algum problema se isso acontecesse?" 
E , antes que ele se aproximasse , alguma coisa tomou conta dela , uma insegurança boba. Daquelas que a gente não sabe se tem fundamento ou não. Ela estava com medo. Não era apenas 'beijar' um desconhecido em uma balada qualquer. Ela gostou de conversar com ele. E através daqueles olhinhos miúdos que mais pareciam duas jabuticabas , ela pôde ver que ele tinha uma alma boa. E doce. Tinha medo que houvesse um contraste muito grande com sua alma , que tinha um gosto um pouco azedo, quase amargo, mas doce de uma forma estranha. 
Antes que ela pensasse muito , no que dizer , por que dizer , como dizer...Ele a beijou. E foi algo tão doce , terno. Ela não sabia descrever. Era macio. Não doía o coração dela. Acarinhava. 
Ela abriu os olhos em seguida. Aqueles olhos que queimava ele por dentro , que ele tentava olhar pra baixo , para o lado , tentava disfarçar...Mas ele sabia bem onde os olhos dele iam repousar. Dentro dos olhos dela. Imersos ali. 
O resto da noite foi uma troca de carinhos. Mãos dadas. Sorrisos. Beijos. Mais beijos. Era uma felicidade de uma noite , e ela sabia. Mas aquela noite , em especial , fez ela perceber que poderia ter aquela sensação boa de novo , sem precisar mudar nada em si mesma. Pois ela viu que quem quisesse mesmo tê-la enfrentaria todos os dramas , shows , dúvidas ,medos que um dia ela ousou ter. Porque ela sabia que ela não valia pouco. E estava disposta a esperar alguém com a alma grande o suficiente para abraçar a causa.
No fim da noite , ela ganhou esperanças e ele ganhou mais uma conquista. Mais uma menina linda que ele poderia dizer para os amigos que beijou em uma noite. Mas não sabiam explicar , algo dizia que era mais do que aquilo. Era mais do que aquela noite. Ela foi deitada no colo dele todo o percurso de volta , sentindo a respiração dele bem perto e pensando que poderia ser a trilha sonora da noite. O sangue pulsando, quente. Passando pelas veias e fazendo com que o coração dele bombeasse. Era estranho porque passou rápido demais aquela noite. Ela não queria que acabasse , mas sabia que teria muitas outras noites iguais àquela, com outros rapazes dessa vez. Será? 
Ela queria que aquela noite se congelasse no tempo. E não , ela não estava apaixonada por ele. Ela só queria tirar a prova dos nove. A prova final. Será que havia algo de especial na atmosfera daquela noite que fez tudo se tornar tão lindo assim?Ou eles sempre teriam aquela conexão mágica, e de certa forma estranha?Não sabia. A vida ia dizer. 

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