segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

 Talvez não exista um porquê e tudo o que as religiões recentemente vêm especulando seja uma grande bobagem. Eu não entendo o motivo de tantas pessoas precisarem de refúgio e acreditarem em algo, quererem tanto assim estarem perto da “santidade”... O que acho bonito no ser humano é justamente o fato de serem imperfeitos e não ligarem muito para isso, não é se sentir arrependido por ter beijado alguém que conheceu no mesmo dia. O que é bonito no imperfeito é o fato de podermos realizar coisas sem sentirmos culpa alguma. A princípio.
Mas eu beijei você, o que faço com isso agora? Toda essa história de religiosidade e sentido da vida está me matando. Está ouvindo? Está me matando. Você estava lá por mim, então por que simplesmente não permanecer ali? Eu juro que não queria ter você para mim, eu só queria estar confortável com a ideia de tê-lo ali, a cada chamada minha. Éramos eternos.
“Cecília, já se arrumou?” - surge a minha mãe, abrindo a fresta da porta do quarto, receosa. - “Eu só queria avisar que já estamos todos prontos. Desça quando estiver pronta” - ela falou, diminuindo ainda mais o tom de voz.
“Estou indo”
É óbvio que ela diminuiu o tom de voz, não é todo dia que estamos indo para o enterro da melhor coisa que nos aconteceu.
Sabe, a morte é uma coisa engraçada, e estou sendo totalmente hipócrita ao falar disso. A verdade é que todo esse papo de que devemos estar felizes porque a pessoa foi para um lugar melhor, não existe. A pessoa pode ter ido para um lugar melhor, pior, paraíso, inferno, ainda vive como 'fantasma' entre nós... O que isso importa? Importa que as pessoas que ficam realmente não têm mais para onde ir, não há um propósito. Eu gosto de pensar que nada aconteceu e que você ainda vai surgir por aquela porta cantando Mardy Bum completamente sem ritmo, e depois vai beijar o meu rosto e dar aquela leve respirada, que faziam meus pêlos do braço eriçarem.
Eu não sei lidar com a sua ida, e eu não sei lidar com o fato de não saber lidar com isso. Sou a pessoa mais independente que conheço, a mais descrente, sarcástica, rabugenta e qualquer outro 'adjetivo' que, simplificando, significa que eu não dependo das pessoas. O amor é bom para quem? Passei minha infância e pré adolescência lendo obras de Shakespeare e ouvindo músicas compostas por Vinícius de Moraes, Chico Buarque e qualquer outro poeta/cantor que se pode imaginar, e que fale sobre amor.
A conclusão que tirei, lendo e ouvindo todos esses artistas é que o amor é a causa e solução para o mesmo mal: medo de ficarmos sozinhos, de não sermos importantes, de não sermos lembrados. Já parei de pensar nisso de forma como os outros acreditam, e eu penso que o amor é realmente uma fuga, uma droga, tal como a religião é para mim. Um vício. E que faz nossas vidas serem menos miseráveis.
Coloquei meu scarpin preto e ri sozinha ao pensar no biquinho que você faria ao pronunciar scarpin e me chamar de patricinha fútil pela centésima vez no dia.
Desci as escadas e minha irmã mais nova, Luna, me deu um abraço mudo. Ela não sabia o que falar, eu não sabia o que falar, estava inconsolável. E todos na minha casa também.
O caminho até a missa de sétimo dia foi silencioso, tirando pelo meu irmão mais velho, Hugo, que cismava em inventar raps achando que rap é a resposta para tudo. Bom, não é. A maneira esdrúxula como ele não sabia rimar, a voz dele fanha, pois tinha acabado de chegar de uma festa, entre outras coisas, fizeram com que eu, com toda a calma do mundo, pedisse com delicadeza:
“Cala a porra da boca”
E ele calou.
Dei um sorriso por dentro, pois nem sempre o irmão mais velho se cala quando pedimos. Na verdade, nunca. Mas graças a você, eu consegui isso. A sua morte foi tão impactante para mim, que não pude deixar de expressar uma pequena morte ao falar ou olhar para as pessoas.
Era nítido o olhar de pena quando chegamos ao local da cerimônia. As pessoas olhavam para mim como se eu fosse um fantasma perambulando pelo local. Eu era o assunto, e não você.
Ao sentar-me junto a minha família, no segundo banco, uma pessoa colocou a mão no meu ombro. Era Carolina. Sua ex namorada, minha ex amiga, nossa ex amiga. A pessoa que nos magoou, mas que ao mesmo tempo nunca deixou de estar perto de nós, de alguma forma.
“Eu sinto muito” - E nesse momento, um olhar de franqueza brotou no seu olhar, e eu pude ver muito além de belos olhos azuis e belos cílios encharcados de máscara para cílios. Eu pude ver a alma dela, e gostei do que vi, ela percebeu que não vale a pena magoar as pessoas que ama para ser reconhecida de algum modo.
Eu dei um abraço mudo e fraco nela. Ainda estava muito triste com tudo que me ocorreu, e não pude deixar de lembrar o quanto ela foi negligente conosco naquele último ano. Éramos nós três, depois ficou só eu e você, e agora estou só.
De resto, a cerimônia foi banal, nada que realmente me lembrasse você. Ninguém lembrava de nenhum fato interessante seu, ninguém ousaria fazer uma piada (quem iria misturar piada e morte numa mesma frase?). Como sua melhor amiga, e seu amor, eu sabia que você ia querer que não levassem tão a sério a sua morte assim. Claro, é dolorosa. Só eu sei disso. Entretanto, a sua memória permaneceria viva conosco, tão viva assim que eu sentia queimar em mim. Eu olhava as coisas e podia ouvir os seus comentários na minha cabeça. Eu te conhecia a ponto de não lembrar de como você era no passado, mas a ponto de te recriar no futuro, mesmo após sua morte. Eu sabia o que você iria sentir se estivesse ali.
Provavelmente, além de sentir pena de sua mãe e seu irmão que estavam inconsoláveis, você iria rir dos sapatos da professora Neuza, nossa professora de inglês. Um verde limão berrante e de péssimo gosto. Não combina muito bem com uma cerimônia fúnebre. Eu ri baixinho na minha mente e em seguida fez-se silêncio no interior de mim: Quanto tempo mais duraria os teus comentários sórdidos?
Eu não queria esquecer.
Eu não podia esquecer.
Se eu esquecesse de você e seguisse minha vida, seria como viver uma grande mentira e realmente acreditar que o Grande Amor da Vida pode aparecer duas vezes. De verdade, eu li Shakespeare, eu ouvi Vinícius e Chico, eu ouvi Jobim nas minhas noites mais solitárias. E esse tipo de amor, eu sabia, ele não iria aparecer nunca mais para mim. E aquela desesperança me enchia de remorso: Por que eu não pude sair com você naquela noite? Eu iria ficar na sua frente e nenhum bêbado cretino iria atropelá-lo na calçada às 3 horas da manhã. Eu estaria lá, e eu pularia na frente.
Eu sei que você seria bem melhor do que eu e viveria melhor sem mim do que eu sem você. Apesar de você negar de pés juntos, depois que assumiu me amar, que não existia vida sem mim. É claro que existia! Para você, tudo vai existir sempre. Mil possibilidades! Para mim também, acho. Sou uma boa pessoa, no geral. Mas a sua aura era inigualável, e você saberia exatamente o que fazer no meu lugar, não se sentiria perdido. Não se sentiria sozinho. Você nunca se sentia sozinho. Você é tão grande, Henry! Você é tão grande que se basta sozinho.
Depois de nosso último adeus (oficialmente), achei que seria melhor descansar. Dormi. E passou um filme em minha cabeça, o filme da última semana. Tudo aconteceu tão rápido, não é?
Eu ainda posso me lembrar daquela tarde em que eu estava me refrescando embaixo da amendoeira da nossa escola, e você apareceu. Eu estava escrevendo um conto sobre uma menina e um amor platônico (a menina: eu e o amor platônico: você). Você deu um beijo no rosto e a sua doce respiração fez os pêlos do meu braço eriçarem, mas eu já tinha me acostumado.
“Terminei com Carolina”- Você disse, numa tranquilidade quase anormal para quem namora desde a primeira série.
Eu respirei fundo e tentei não encher meu coração de esperanças, afinal, tratava-se de Henry e Carolina: O casal mais vai-e-volta de todos os tempos. Não entendia o porquê namoravam, mas eram os meus dois melhores amigos, então o que eu podia fazer além de intermediar tudo? Sim. Eu dava uma de Cyrano de Bergerac para manter as coisas em ordem, isso era importante para mim. Convivo com uma família instável, uma mãe em depressão constante, um irmão que já foi pego usando drogas e uma irmã que se fecha para o mundo. Assim como eu. Isso me preocupa extremamente, pois não quero que sejam infelizes como eu sou. Eu queria ele para mim, mas não podia simplesmente alterar o rumo das coisas em busca do “inesperado”, pois não sei o que pode estar me aguardando lá. Poderia fazer Henry infeliz. Ou muito feliz. Quem sabe. Acho que o máximo que vou conseguir é ter o prenúncio dessa talvez felicidade que eu proporcionaria a ele, mas é difícil dizer que aquela nossa “maré boa” se manteria por muito tempo.
Voltando ao assunto principal, eu sabia que meu coração não tinha motivos para ficar alegre, daqui a quinze minutos, Carolina iria aparecer. Linda. E eu continuaria a escrever meu conto sobre amor platônico pois era isso que eu sabia fazer, escrever sobre a minha própria vida como uma pessoa egoísta que era (sou).
“Por que essa decisão repentina?”
“Não sei, eu e Carol somos muito diferentes. Ela não é o tipo de pessoa que posso contar qualquer coisa, ela não consegue ver todas as minhas dimensões, aliás, acho que ela consegue ver sim, mas só sabe lidar com poucas. E eu preciso de uma pessoa que consiga lidar com todas elas. Eu quero ter alguém com quem eu me sinta sozinho, tipo, tão bem, tão feliz, tão a vontade, que pareça que eu esteja falando comigo mesmo, de tão bem que essa pessoa vai me entender. É maluquice, né?”
Não, não era maluquice. Eu entendia exatamente o que ele estava falando. E eu era essa pessoa, por que é tão difícil ver? Eu sei que não tinha os cabelos ruivos encaracolados dela, e nem tanta sarda, e nem o sorriso plástico e lindo. Eu era Cecília. Uma pessoa mediana.
“Não é maluquice. Ela está bem?”
“Não recebeu muito bem a minha decisão. Jogou um livro em mim na biblioteca, e disse que queria ser reembolsada pela viagem que faríamos ao Caribe no final desse ano.”
“Nossa, adoro quando as pessoas são românticas!”
“Do que está falando? Você é a pessoa menos romântica que conheço.”
“Se você acha...”
Me calei.
Pelo amor de Deus, o que eu estava fazendo de errado? É verdade, o amor é idiota. Ainda mais quando não correspondido. Aliás, eu não tinha nada contra o amor, mas só quero dizer que, de perto, ele não é tão legal assim. Nem um pouco legal. Eu o amava. Droga! Eu o amava tanto que não ligava de amá-lo. Eu o amava e isso bastava para mim.
“Bom, quando eu fui reembolsá-la, ela continuou aos gritos pela biblioteca. Acho que para dar uma satisfação para a high society da escola, aquele povo deprimente com quem ela anda nesse últimos tempos, que ela quem terminou comigo. Sabe como é, para manter o 'status'” - e nesse momento, Henry fez a cara de nojo que só ele sabia fazer.
Dei uma risada. Logo me contive.
“Vou vê-la, ela deve estar precisando de um ombro amigo verdadeiro para variar”
“Vai lá, mas boa sorte, você pode ser a próxima vítima do livro assassino”

Subi as pensando em como iria consertar tudo aquilo dessa vez. Geralmente, é ela quem termina. Geralmente é eufemismo, sempre. Ela sempre termina quando algo a desagrada. Como uma criança mimada que não entende que as coisas podem sair do controle algumas vezes. Que as pessoas magoam, e nem por isso nos querem mal.
Por sorte, encontrei Carolina no corredor, sentada em um dos bancos, mexendo no celular. Sentei-me ao lado dela, silenciosa.
“Oi”
“Oi” - Ela retrucou, olhando fixamente para o celular, e sem a menor intenção de virar-se para mim.
“Sei que você precisa conversar, está magoada...”
“Na verdade não, Cecília. Estou aliviada. Eu e Henry não tínhamos futuro. Ele é um bom aluno, provavelmente vai ser um bom médico, como ele tanto sonha, mas eu tenho planos maiores para mim mesma, e não acho que ele aguentaria tanto sucesso assim”
Eu ri discretamente.
“Qual a graça, Ciça?” - Seus belos olhos azuis me encaravam, impassíveis.
“ 'Qual é a graça, Ciça'? É sério que você não sabe do que estou rindo? Meu Deus. Olhe para você. Você e Henry eram o casal mais bonito e sincero que já conheci, podiam não ter nada em comum, e eu reconheço. Mas a convivência manteve vocês dois numa sintonia impressionante. Depois que seu pai enriqueceu, você ficou com manias de grandeza e começou a tratar a mim e ao seu namorado de maneira diferente. Éramos um trio, e você destruiu a coisa toda. Juntou-se a Eduarda e perdeu completamente a autenticidade, capacidade de pensar por si mesma, questionar... Você vive para fazer a diferença no mundo, atualmente. Você vive confiando em uma vida de estrelato que só te levou até agora a uma vida rodeada de amigos falsos e grandes festas. Você não é assim, pare de tentar fingir ser essa versão patética de Barbie Malibu.”
Pronto. Eu tinha falado o que estava engasgado há semanas.
Carolina me olhava com os olhos quase esbugalhados de tão arregalados, mas retrucou quase que imediatamente:
“Sabe, Ciça, sempre achei que você tivesse inveja de mim... Mas agora, posso confirmar isso. Quer dizer, olhe para você. Sempre vivendo a minha sombra, a espera de ser tão bonita, inteligente e carismática quanto eu. Você não nasceu para brilhar, amiga. Aceite isso como uma dica preciosa para fazer você evitar perder seu tempo. Forme-se no ensino médio, vá para a faculdade, faça um curso medíocre como Henry e vivam suas vidas medíocres bem longe de mim.”
“Por que você tá falando que o curso do Henry é medíocre? Sabe que ele sonha com isso desde criança, e ele vai realizar esse sonho. Você sabe o que significa para ele essa oportunidade. Acho que quem vive uma vida medíocre é você, a espera de algo que não sabe se vai se concretizar. Provavelmente vai acabar virando uma estrela, sim. Mas uma estrela de um barzinho qualquer, que será frequentado por bêbados às quintas, sextas, sábados... Todos os dias. Esse vai ser o seu sucesso.”
“Sempre soube que você amava Henry mas não a tal ponto. Olhe só o que você acabou de dizer de mim! Eu sou sua melhor amiga desde sempre, e Henry sempre foi um detalhe na nossa história. Logo que ele surgiu em nossas vidas, você começou a sair mais com ele do que comigo. Então, para me enturmar, comecei a namorá-lo. Não gostava dele no começo, mas com o tempo me acostumei às piadinhas baratas e aos passeios 'românticos' de ônibus aos sábados à noite. Pode ficar com ele, ele é todo seu”
“Ótimo”
Ela se levantou, jogou seus cabelos ruivos para mim, empinou os seios e caminhou. Logo eu vi sua silhueta desaparecer em meio a tantos estudantes. Sabia que havia perdido uma amiga. Sabia que crescer era um pouco sobre dar adeus às pessoas. Naquele mesmo dia, joguei fora meus antigos gibis. Não prestavam mais.
“O que ela disse foi verdade?”
Em meio a tantas silhuetas e pessoas desconhecidas, Henry surgia. Aparentemente ficou ali o tempo todo, e eu senti meu coração parar.
“Sobre eu ter inveja dela?Claro que não, né, Henry”
E me levantei para sair.
Ele segurou meu braço, e me olhou profundamente.
“Você me ama, Ciça?”
“N-não, eu...” - E do nada, meus olhos começaram a encher-se d'água e eu não pude fazer muito além de sair correndo.
Fui para fora do prédio, para perto da minha amendoeira amiga. Lá eu estava segura. Não queria confrontar esse sentimento, eu já me acostumei com seu segredo, era um segredo que me sustentava, sem esse segredo eu deixava de ser Cecília, pois foi esse segredo, que desde sempre estava comigo. Durante o café da manhã, almoço, jantar, aulas, provas. Era um bichinho que corroía meu coração, um companheiro de aventuras.
Sentei na amendoeira e Henry chegou em seguida, o rosto vermelho. Estava prestes a explodir.
“Responda, Cecília! O que ela falou, foi verdade?”
Eu estava muda. Não conseguia falar. Esperei tanto por esse momento, eu queria falar. Eu queria. O máximo que consegui foi dar um sorriso patético:
“Você ainda acredita em papos de Carolina?”
E ele me beijou.
Foi a melhor sensação que pude experimentar. Beijá-lo foi a mesma coisa que eu pensava que seria, minto, era melhor. O meu coração parou de estar sempre acelerado e se acalmou. As coisas magicamente faziam sentido. E eu estava sendo uma brega tendo todas aquelas sensações idiotas do amor, mas eu não me importava.
Depois do beijo, ele me olhou fixamente, e novamente perguntou:
“É verdade?”

“Bom... Eu sempre te amei, sabe. Não como amiga, não... Sempre quis ser sua namorada, sempre escrevi sobre você, sempre pensei em você, sempre quis você pra me abraçar nos sábado à noite em que você dormia lá em casa pois estava bêbado demais para ir pra sua. Você dividia a cama comigo mas virava para o outro lado. Uma vez, mesmo estando usando uma coberta diferente da sua, eu estiquei minha perna e usei meu pé para fazer carinho no seu. Foi um dos melhores momentos que já tive. Eu te amo desesperadamente, de maneira equilibrada mas também louca. Eu queria poder ter contado antes, mas eu tinha que competir com a Carol pra ganhar você, e para mim, você nunca foi prêmio. Você é muito mais que prêmio, você é luz, poesia, encanto. Você é o que faz sentido nessa vida para mim, e não poderia arriscar perder você para Carol, quer dizer, eu perdi você desde o minuto que te conheci, que pus os olhos em você. Mas nunca foi uma 'batalha' direta entre mim e Carolina. Obviamente eu iria perder”
Ele me olhava atônito.
E simplesmente levantou e foi embora.
Eu fiquei olhando para sua figura desaparecer enquanto saía da escola. Ele me olhou uma última vez antes de ir, e eu por um segundo pensei que poderia correr até ele e implorar uma segunda chance de mostrar que eu poderia ser tão legal quanto ela. Tão boa quanto ela. Sim, eu era uma feminista. E sim, eu estava disposta a correr mil quilômetros por aquele homem se ele estivesse disposto a ficar comigo. E sim, eu queria ser oprimida. Todo santo dia. Amá-lo era algo tão bom que eu não conseguia imaginar algo tão bom assim.
Eu sabia que provavelmente não correria mil quilômetros por ele, e que provavelmente não largaria as minhas ideologias para rastejar-me aos pés dele. Mas, ele sabia disso. E eu queria estar com alguém em quem eu pudesse confiar, com quem eu pudesse ficar sozinha. Ele era essa pessoa. Ele sabia que eu era feminista, chata, e adorava debater comigo sobre todos os assuntos dessa pauta, discordando de todas as minhas opiniões, mas nunca me ofendendo.
Eu o havia perdido.
Eu tive chance, mas o deixei ir.
Peguei minha mochila e fui embora para casa, não me restava muito mais além dos meus cereais matinais e uma boa cama.
Chegando em casa, minha mãe estava bebendo uma dose de Whisky e ouvindo Elvis. Quase cuspiu tudo na minha cara quando me viu:
“Filha? O que houve? Te fizeram algo?”
“Nada mãe, só estou com cólica”
“Ah sim, qualquer coisa me chama”

Subi e fui para meu quarto pensar no quanto eu poderia estragar tudo. Pisar no rabo de Pingo (meu cachorro) poderia ser o próximo passo. Quem sabe? Eu poderia não ver aquele pitbull enorme na minha frente, com a barriga para cima querendo carinho.
Fui para meu quarto brincar com Pingo quando minha mãe grita das escadas:
“Henry está subindo, filha!”
Eu estava horrorosa, tinha chorado tanto... O que mais ele queria de mim?
Eis que aparece a carinha dele, tão ou mais inchada do que a minha.
“Eu te amo também. Eu sempre te amei. É difícil para mim admitir isso, mas estar com a Carol era cômodo demais para eu me arriscar e ousar sentir algo verdadeiro por você. Quer dizer, olhe para você. Sério. Você é inteligente demais, não digo inteligente no sentido de tirar boas notas, mas você tem uma percepção sensível do mundo e das pessoas, você conhece bem as pessoas que te rodeiam, e automaticamente me conhecia bem. Eu sempre tive medo de aparecer demais para alguém, e não queria me envolver emocionalmente com alguém que poderia me expor tanto, que sabia tanto de mim, que poderia me deixar sensível e todas essas babaquices. - ele riu de um jeito sério, ele estava muito nervoso – Me desculpe, eu fui covarde, e eu sei disso. Mergulhar em você seria algo profundo demais, então eu preferi ficar no raso, no conhecido. Onde meus pés podiam tocar.”
Foi a minha vez de beijá-lo.
Aquilo tudo era estranho e repentino. Em um dia nossa vida se transformou e estávamos juntos. Aquilo era tão comédia romântica teen que eu queria vomitar. Mentira. Eu estava amando viver uma comédia romântica teen. Por mais comédias românticas teen no mundo! Brincadeira. Eu não sabia se aquele repentino e singelo final feliz para a nossa história poderia se perpetuar. Poderíamos ter nosso final feliz? Poderíamos? Por favor, Deus, Buda, Alá, Alguém? Eu quero ser feliz com esse cara. Esse.
O resto dos dias matamos aula e íamos ao parque, nos conhecíamos mais e mais profundamente. Não digo sobre gostos pessoais. Eu digo, sobre os anseios da alma. Conversávamos sobre coisas tais como o sentido da vida, e ele toda hora falava, apertando-me contra seu peito “pode acreditar que estamos juntos?”.
Não, eu não podia acreditar. Era irreal aquilo tudo. Eu tocava suas mãos, seus lábios. Não eram meus sonhos, era realidade. Na quinta feira eu até mordi ele para apenas comprovar que era tudo real. Ele me mordeu de volta, bem na bochecha, fiquei com a bochecha doendo por umas duas horas ininterruptas.
Sexta feira ele disse que queria fazer algo diferente e eu estava pensando que ele iria para minha casa, para assistirmos um filme ou algo do tipo. Estava com um vestido florido antigo. Bonito, mas percebi que estava vestida inadequadamente quando abri a porta para ele. Ele estava de terno e gravata, lindo. Me deu um sorriso como se tivesse adivinhado que eu não estaria vestida adequadamente para a ocasião.
“Deixa eu só trocar de roupa, amor”
“Não precisa, você está linda!”
E simplesmente pegou a minha mão e me levou até um carro, parece que teríamos motorista aquela noite. E altas emoções.
Chegamos a um restaurante fino do centro da cidade, o qual eu não tinha a menor ideia que existia, claramente porque não procurava por lugares que eu não poderia pagar.
“Eu estava economizando esse dinheiro para um videogame novo, mas posso juntar um pouco mais depois e comprá-lo. Você é prioridade.” - E sorriu.
Caramba.
Ele sabia ser irresistível.
A noite estava ótima e eu não queria estragar tudo sendo eu mesma, mas não pude me segurar:
“Eu tenho um medo, sabia?”
“Diga qual é.”
“De uma pessoa que eu amo muito morrer. Tipo em Romeu e Julieta. Qual deve ser a sensação de saber que o Grande Amor da Vida faleceu e você nunca mais terá outro igual? Entende... Se você morresse, eu não saberia o que fazer...”
“Por que isso agora?”
“Tenho medo de ser feliz, e isso está me assustando pra caramba”
Ele levantou-se da mesa e me deu um abraço. Um abraço apertado. Longo. E sincero.
Voltou para seu lugar, e disse:
“Você não precisa ter medo de me perder, porque eu estarei sempre ao seu lado. Independente do que venha a acontecer, saiba que você significa tudo pra mim, e que por mais que tenhamos demorado para tomar a iniciativa de ficarmos juntos, tudo será eterno. Não existe tempo entre nós, quando se trata de amor, tempo não existe. Estamos numa fenda do tempo, e aqui o tempo não passa. Aprendemos mais e mais sobre o outro, sobre os anseios, medos mais profundos, curiosidades, pequenas alegrias e essas coisas. Como se estivéssemos sozinhos”
Eu sorri.
“Mas estamos sozinhos. Não há ninguém aqui”
E em seguida rimos.
O restaurante era chique, mas a comida era deliciosa. Era muito procurado. Só víamos garçons desesperados indo de um lado para outro, para melhor servir todos os presentes. Enquanto isso, madames granfinas levantavam e ficavam andando igual baratas tontas pelo lugar. Para verem e serem vistas.
“Sério, Henry. Obrigada. Isso é muito mais do que eu poderia sequer imaginar.”
“Espere para ver nossas férias ao Caribe!”
Eu fiquei olhando para ele, atônita.
Caribe?!
“Isso mesmo, amor meu. Caribe! Vamos pegar finalmente um bronzeado.”
Eu sorri do tamanho do universo nessa hora. Viajaríamos só eu e ele?
“Nossa... Agora eu realmente tô sem palavras”
Comemos, rimos, nos divertimos.
Foi uma noite mágica.
Voltando para minha casa, convidei ele para subir.
Ele sorriu, malicioso, e sabia o que significava.
“Tem certeza?” - perguntou ele, baixinho.
“Shh, tenho, agora suba!”

E sim, tivemos uma noite mais mágica ainda. Ele foi meu primeiro amor, meu primeiro homem. E ele tocava no meu corpo como se tudo fosse novo para ele, como se ele fosse tão virgem quanto eu. Eu sabia que não era. Mas era estranho. Tudo para ele era novo também, ele se redescobriu, se reinventou ali.
Às 2:30, ele foi embora. Me deu um abraço. Um beijo. Apertou meu seio em sua mão, e disse:
“Eu nunca fui tão feliz assim em toda a minha vida. Você é a mulher da minha vida, definitivamente. Nada nunca vai mudar, entendeu? Estarei sempre aqui, com você.”
Mas não, ele não estaria.
Às 4:00 recebi uma ligação de sua mãe. Ele sofreu um acidente na rua de casa. Veio a falecer.
Eu não sabia o que fazer, mas o telefone escorregou das minhas mãos. Eu me sentei no chão e repassei toda aquela noite na cabeça, e me culpei por ter pedido para ele dispensar o carro, para voltarmos a pé para minha casa, já que são próximas uma da outra, ele não andaria muito da minha casa até a dele depois. Eu queria olhar as estrelas.
Eu e minhas idiotices românticas!
Queria que meu coração congelasse, pois ele sangrava. Ardia. Eu não era mais eu mesma, eu tinha morrido junto com ele. Um pedaço de mim. Um grande pedaço.

E tudo remete ao meu quarto hoje, domingo pela manhã. Pós cerimônia fúnebre, eu só queria sair de casa. Minha mãe, coitada, a cada cinco minutos batia na porta querendo me oferecer algo, um biscoito, uma água, ou apenas verificando que não me matei sufocada no travesseiro.
Saí de casa e fui ao parque. Ao parque que nós frequentamos tão assiduamente, naquela semana maravilhosa. Semana passada. Tudo começou numa segunda. Eu penso que cinco dias foi tão pouco tempo para tê-lo perto de mim. Foi tão... ínfimo. Eu queria passar o resto da minha vida com ele, e tenho certeza que ele queria o mesmo. Nos amávamos.
Eu sempre tive medo de como reagiria se o meu Grande Amor da Vida morresse. E eu estava vivendo aquele momento. Eu estava, mas ao mesmo tempo não estava. Eu estava ali mas queria estar morta também. E não, não estou exagerando. Por um momento, senti algo tocar a minha mão, e se eu não fosse muito cética acharia que era a mão dele tocar a minha. É, eu estou acreditando cegamente que é a mão dele mesmo.
Eu estou reagindo à morte do meu grande amor como eu sempre achei que reagiria: Com muita, muita dor. Perdê-lo foi a coisa mais difícil que já fiz na vida, e digo isso aos dezesseis anos com toda a propriedade do mundo. Nunca mais sentiria tamanha dor. E eu temia que aquilo fosse verdade. Eu não queria esquecê-lo, e nem podia. Os comentários internos, sua presença invisível e seu hálito doce estariam presentes em mim, impregnados nas roupas e na minha cabeça. Ele estaria comigo para sempre, como prometera.
Eu poderia simplesmente pedir que cuidassem bem dele, seja lá que lugar é esse. Tinha certeza que estava em festa. Receber Henry era motivo de fazer o dia de alguém, ou a vida de alguém. Como foi o meu caso.

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