quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Valentina.


"Querido Júlio,Jurei para mim mesma noite passada que falaria pessoalmente sobre o fato de eu estar deixando você,mas não consegui suportar a ideia de olhar para o azul dos teus olhos -agora amargos- por minha causa. Não consigo lidar com o seu jeito,para ser sincera,acho que você deveria procurar ajuda.Você tem um jeito muito introspectivo e eu tenho apenas vinte e dois anos, quero aproveitar o máximo da juventude. Espero que encontre a felicidade. Sinto muito, Heloísa."

Ao ler tais palavras preferi ficar no quarto por um tempo. A carta ainda me queimava nas mãos, sentia-as quentes porém não via nenhuma queimadura aparente. Queria morrer. Ou matar. Ainda não tinha decidido muito ainda sobre tal fato. O que ela queria dizer com 'pedir ajuda'? Ela estava sugerindo que eu procurasse drogas, ou então um psicólogo? Ou então um ombro amigo? Jeff, meu único amigo remanescente dos tempos de escola, e meu único confidente, estava tendo os melhores momentos da vida dele em Amsterdãm e aparentemente não gostaria de uma furtiva ligação contando sobre meu desastrado término de namoro com a mulher que eu aparentemente idealizava, ele estava muito ocupado com todas aquelas prostitutas e todas aquelas drogas (ambas com nomes que ele não conseguia ao menos pronunciar).
Por que Heloísa havia me deixado? Claro, na carta ela é bem clara sobre os motivos. Certo, isso foi uma ironia. Caro leitor, se você não é inteligente o suficiente para perceber tal ironia sugiro que vá procurar outro texto para ler neste minuto. Acho um desrespeito ela fazer isso. Namoramos por exatamente 5 anos e 8 meses, e eu exigia o mínimo de consideração. Nós transamos. Foram noites inteiras de puro amor e tesão, misturados em aroma de canela e outros cheiros que eu não sabia identificar, mas que vão ficar na minha memória. Eu a amava. Com tanta força,mas tanta que eu achava que não conseguiria ser fiel ao que eu realmente sentia dizendo,simplesmente. Minha necessidade de escrever aumentava. Escrevi sobre ela exatamente 30 páginas do começo de um livro que eu iria dedicar para a mulher que,na época,fazia com que eu escrevesse as coisas mais sinceras. Eu a observava dormir, colocava um cigarro com sabor canela na boca e enquanto a máquina de escrever estalava histericamente, ela apenas dormia em um sono tão tranquilo e doce que me dava vontade de juntar-me a ela. Mas eu não conseguia. Minha máquina de escrever sempre teve um domínio muito grande sobre minha vida, sempre tive necessidade,até grosseira,de escrever sobre tudo. Poetizar tudo. Idealizar tudo.
Droga, eu idealizei Heloísa.
E ainda fui tirado como maluco.
Mal sabe ela que artistas como pintores e escritores são vistos como malucos desde que esse mundo é mundo, e não seria uma carta idiota que mudaria a minha concepção de que não existem malucos, existem apenas pobres diabos incompreendidos pelo mundo. Na verdade, eu me sinto assim desde que nasci. Um gauche como diria Drummond. "Vai, Júlio, ser gauche na vida!" Pois sim, eu estava desempenhando esse papel com um brilhantismo invejável. A verdade é que eu era estranho, e não era porque estava escrito em francês que faria a minha situação ficar mais bonitinha ou mais romântica. Eu era um gauche, eu era um estranho.
Não sei vocês, mas quase toda noite eu penso em roteiros diferentes para a minha vida, se eu tivesse escolhido diferentemente do que escolhi. Provavelmente seria bem sucedido, rico, cheio de mulheres, e não saberia nada de poesia.
Estava no quarto, com o mesmo roupão há aproximadamente 3 dias comendo apenas biscoitos e bebendo café. Não sairia dali sem ter uma diretriz do que fazer, ou apenas uma ideia do que seria a minha vida daqui pra frente. Sem Heloísa, sem noites de tórrido amor, e sem cheiro de canela na minha cama. Sim, eu sou melodramático. E sim, eu assistia muitas novelas mexicanas quando mais novo.
Não era de todo feio : Tinha 1.76 de altura, era magro, branco, cabelos lisos e negros que iam até metade do meu pescoço,tinha olhos com azul triste que ficavam escondidos sob meu óculos, e tinha barba. Não via nada de repugnante nisso. Era vegetariano, mas isso nunca me impediu de conquistar as mulheres. Era fã de autores clássicos, e adorava ficar em casa à noite, não gostava de bares e muito menos de boates. Publicitário, e pseudoescritor.
Não é possível que não exista uma mulher nesse mundo que não goste de homens do meu estilo. Eu sei que homens de pólo e loção pós barba cara estavam na moda, porém não poderia me desprezar de tal forma. Olhei para o espelho ao lado da cama. Estava com olheiras abismais,e provavelmente estaria fedendo.
"Tomar um banho é sempre o primeiro passo para ter um dia proveitoso" já dizia minha mãe, sábia como sempre. Eram 21:00 horas do dia 15/07 e eu não fazia a menor ideia do que iria fazer da minha vida daqui há 2 segundos, mas estava confiante. Um banho, era esse o caminho.
Depois de um banho caprichado,me arrumei como quem vai à uma festa, e fiquei andando pela sala e cantando sucessos de um dos meus cantores favoritos, Chico Buarque. Tomando um bom vinho, e comendo queijo. Como quem recebe visitas.Acho que estava recebendo a visita de mim mesmo, pela primeira vez.
"Vem, Júlio, pode entrar! Sinta-se à vontade, a casa é sua!" pensa eu com meus botões.
O telefone tocou.
"Como está meu mais novo solteiro?"
"Quem é?"
"Jeff, ora essa. Tá solteiro e já tá esquecido dos amigos, cara?"
A risada do outro lado da linha era familiar e acolhedora. Senti saudade do meu amigo.
"Que é isso meu camarada, quero saber das novidades da cidade do pecado."
"Vou contar tudo, irmão. Tô aqui embaixo da tua porta, veste qualquer coisa e vamos dar uma saída, não quero perder meu costume de sair toda noite.É inspirador."

Jeff trabalhava na mesma empresa que eu, era um publicitário. Mas tinha um trabalho artístico fora do escritório, assim como eu com meus papéis e escritos. Jeff grafitava, e fazia um trabalho belíssimo com as crianças da periferia da nossa cidade. Era um malandro e inconsequente, mas consciente. Sabe-se lá como ele conseguia.
O abracei com toda a minha frustração e orgulho esmagados, mas omiti a parte de ter ficado três dias praticamente morto no meu quarto me culpando pela falta do amor de uma mulher que não me amava. Isso era coisa de idiota, como ele mesmo falava.
Estávamos em um bar bem frequentado perto da minha casa, agitado, e com músicas agradáveis. Era apenas de MPB , e enquanto eu olhava com amargura para o meu copo de cerveja, mostrei a Jeff o bilhete que Heloísa deixara.
"Mas que vagabunda, merece se foder essa porra!"
"Relaxa, cara. Já relaxei, e já aceitei. Já sabia que estava perto do término."
Mentira. Mentira das grandes. Uma coisa que eu não sabia era que Heloísa iria embora.
"Eu sei, Júlio.Mas cara vocês namoraram por cinco anos, isso é muita coisa. Desde a faculdade, eu esperava pelo menos um pouco de consideração da parte dela."
"Eu também...Mas deixa pra lá, já passou. Aliás, como você ficou sabendo que agora estou no time dos solteiros?"
"Ora, Joana me contou. Lembra que eu tive um lance com ela mês passado, né? Então, estava tentando falar com você, mas não estava conseguindo,parecia que você tinha tirado o telefone do gancho. Liguei pra Jordana para saber sobre você, e ela me contou da 'novidade'."
"Entendi..."
Não deu para eu completar a frase pois de mãos dadas com um brutamontes de 1,90 e que devia gastar mais tempo malhando que pensando, surgiu Heloísa. Ela me olhou com uma expressão preocupada, e olhou para baixo,com vergonha. Eu a encarei com firmeza, e olhei para a mão dela entrelaçada com a dele.
"Nossa, cara, não sabia que isso ia acontecer, me-me desculpe...Vamos embora, vou pagar a conta."
Eu vi Jeff nervoso de tal forma apenas em uma outra situação, na quinta série, quando descobriram que ele ficava espiando as meninas trocarem de roupa no vestiário depois das aulas de Educação Física. Foi difícil explicar para diretora tal ato de 'pura sem vergonhisse',de acordo com ela.
Fomos embora,Jeff foi para casa depois de me dar um abraço mudo, que me fez entender que amigos são para esses momentos,mas ao invés de eu ir para casa mastigar minha dor, preferi ir para onde minhas pernas me levariam, acabei parando na praia. Eu queria olhar para o mar, respirar aquele ar, sentir aquele cheiro salino e sentí-lo queimar minhas narinas da mesma forma que eu sentia meu coração queimar agora. Mas não pude me concentrar na minha dor pois uma menina estranha estava tirando foto do mar, sendo que estava de noite. E claramente o mar era mais bonito de dia, com todo aquele contraste entre a brancura da areia e o azul do mar, e do céu. Ela percebeu que eu estava olhando para ela, e virou-se. Surpreendentemente me deu um sorriso, e fez um sinal para que eu me aproximasse.Pensei que ela fosse me assaltar ou algo do tipo, porque era a única criatura na praia àquela hora da noite,e provavelmente estava fora de seu juízo. Não sei porque me aproximei.
"Você deve estar me achando louca por tirar fotos do mar à noite,né?"
A espontaneidade dela me surpreendeu. Não consegui deixar de sorrir, por tal inocência em conversar com um homem que mal conhecia.
"Na verdade, achei bastante curioso,sim. Por que essa hora? De manhã o mar é mais bonito, tem mais luz."
" Por que você acha isso?"
"Quê?"
Ela riu. Eu ri também. O riso dela me dominava, era quase melódico.
"Pois quem disse para o senhor, que é mais bonito de dia?"
"De dia as coisas estão mais claras, tem mais luz."
"E desde quando só por que as coisas estão mais claras, elas são mais bonitas?"
Ela era louca, e estava começando a me irritar.
"Bom, eu acho que nessa hora, de dia, a brancura da areia fica mais aparente frente ao azul do mar.E claramente dá para notar melhor as nuvens do céu"
"A intenção é justamente essa. Eu gosto de tirar foto quando o mar está calmo, e tudo não passa de um borrão. Não dá para separar muito bem o que é mar e o que é céu.Acho isso poético. Desde criança sempre achei que em algum lugar daquela linha tênue que separa o céu do mar, eles se encontrariam, em um abraço."
Percebi minha bochecha suspender sem eu querer. Sorri para ela.
"A propósito, qual é o seu nome?"
"Júlio."
Eu estava realmente sem resposta. Agora ela estava ajeitando o equipamento fotográfico e deu para repará-la com mais intenção. Ela usava uma saia longa cor azul marinho, e uma blusa com um tom rosa mas muito claro, quase do tom de sua pele. Tinha os cabelos castanhos,até a metade das costas,em dreads,amarrados em um rabo de cavalo. Olhando com mais atenção percebi que seu rosto era repleto de sardas, e tinha olhos verdes. Não verdes no sentido literal, mas era algo amendoado e verde, era difícil enxergar com a pouca iluminação. Ela era linda.
Só depois me dei conta que estava olhando-a com ar de deslumbramento, e que ela estava me olhando de volta. Tratei de recompor-me, e tossir para disfarçar meu embaraço.
"E o seu nome?"
"Valentina!"
Ela me deu um sorriso por perceber que eu queria conversa. Me pareceu triste o verde dos olhos dela. Mas nada falei, mal a conhecia. Por incrível que pareça,me sentei ao lado dela para conversar. Nunca experimentei conversar com uma estranha antes.
Valentina era o tipo de mulher espetacular. Estava cursando cinema, e já tinha mil e uma ideias para seus futuros filmes. Me senti ridículo perto dela. Ela agia como se as coisas fossem fáceis demais, e estivessem ao alcance de suas mãos. E eu, com toda minha experiência de vida, me sentia o homem mais amargo do mundo perto de sua juventude tão linda. A verdade é que as coisas estavam ao alcance de nossas mãos,nós criamos as barreiras mentais e isso pesa no nosso coração,no futuro. Sentia meu coração com alguns arrobas naquele momento, com ela. Sua leveza fazia com que eu me sentisse o homem mais pesado do mundo. Mas ao mesmo tempo, fiquei leve de novo, como não conseguia em anos de vida.
Ela queria viajar bastante depois da faculdade, provavelmente iria para a Índia.
"Mas é sujo na Índia."
"Aqui também é, só que lá pelo menos é uma cultura diferente,estou cansada desses porcos engravatados que se acham reis da Verdade Absoluta."
"Está falando dos pastores ou políticos?"
"Dos dois"
E rimos.
Ela estava acampando na praia, e enquanto fumávamos ela me contou um pouco sobre sua vida. Os pais eram conservadores e não a apoiavam com a faculdade,mas ela dizia que não tinha paciência para lidar com frustrações futuras, que fez as contas e que o que ela pagaria com o psicólogo no futuro, para seus traumas profissionais poderiam muito bem serem aplicados para outras coisas.
Sua simplicidade era de um encanto imensurável.
Ela estava acampando aquela noite pois gostava de ficar sozinha fora de casa, acampava na praia à noite para refletir. E ter ideias. Ela dividia um apartamento com mais duas amigas do mesmo curso, e gostava delas. Tita e Luciana.
Depois de saber todas as histórias dela sobre o primeiro beijo, primeiro dia de aula, primeiro namorado, primeira briga, primeiro sei-lá-o-quê, resolvi contar-lhe do meu recente término e do quanto meu coração doía. Ela me ouviu compreensiva, e leu a carta.
"Ela não te amava mais."
"Acho que ela nunca me amou, Valentina.Me sinto um idiota."
"Não se sinta..."
Ela segurou minha mão. Ela apertou com força. Suas mãos eram macias, mas eu conseguia sentir a dor dela compartilhada comigo.
"Olha, se você chorou, se você se desesperou,valeu a pena o desatino. Agora, se não chorou, se não se desesperou...Paixão não era!"
"Por que viver pesa tanto?"
Eu sempre me fazia essas perguntas,mas não em voz alta. Não gostava de compartilhar meus pensamentos sem sentido, era chato ver o rosto de interrogação das pessoas,achando que eu estava maluco. E o rosto estranho sempre vinha acompanhado de um 'o que quer dizer com isso?'
Por incrível que pareça, Valentina compreendeu a minha pergunta. E não demorou para elaborar uma resposta brilhante.
"Não confunda as coisas,Júlio. Nós vivemos pesados,com tantos planos, e obrigações,e sentimentos, e dores e traumas, porque queremos. A vida é muito simples.Nós complicamos tudo. Se parar para pensar, a sua vida é apenas uma roda viva de expectativas e decepções. Já foram tantas as decepções que eu prefiro não esperar mais nada."
"Não consegue esperar nada do amor?"
Não resisti a essa pergunta. Uma mulher tão incrível daquele jeito não poderia ter desacreditado do amor, tão jovem.
"Provei do amor,todo o amargor que ele tem, então jurei não amar mais ninguém"
"Noel Rosa"
"Ei,você é bom!Achei que quase ninguém ouvisse mais essas músicas antigas."
"Também me sentia meio deslocado com relação ao meu gosto musical."
Sorrimos um pro outro.
"Por que não consegue amar mais ninguém,Valentina?"
"Eu não sei. Acho que sou um pouco criança ainda."
"Justamente.Só as crianças são capazes de amar da forma mais pura e nobre."
"É,talvez. Mas eu confio nas pessoas cegamente. E as pessoas erram, e muitas vezes podem nos machucar sem intenção alguma, ou com intenção. A verdade é que eu me entrego muito."
"Dá pra perceber pelos seus olhos"
"Hum?Meus olhos?" Ela disse rindo, desconfiada.
"É, seus olhos ué!"
"Ora, você viu o quê nos meus olhos?"
"Eles têm uma cor inexata, e são misteriosos. Quando você fala das coisas, seus olhos brilham,mas é um brilho bonito,quase magia.Dá pra perceber que você se entrega."
Eu acho que queria beijá-la. Mas não conseguia me mover, seu jeito era entorpecedor,me sentia um pouco anestesiado.Queria tanto a alma dela,quanto a boca.Queria conhecê-la melhor, queria descobrir mais sobre ela. Mas ao mesmo tempo a boca dela rachada pelo frio, parecia convidativa. Mais ainda quando sorria.Me segurei,não sabia ainda o que ela queria.
Ela ruborizou com meu elogio.Olhou para baixo. E me entristeci. Pela primeira vez naquela conversa infinita, ela tirou os olhos dos meus. Valentina sabia como prender alguém apenas olhando.
"Bom, eu já sei um jeito para você esquecer a sua ex, eu fiz isso com um rapaz que eu amei, e deu certo.Minha mãe é psicóloga então ela me disse que escrever sobre o que sentimos é reconfortante,você costuma fazer isso?"
"Na verdade,sou um escritor nas horas vagas."
"Ah,então somos do mesmo clube! Bom, um momento."
Eu estava um pouco decepcionado,não entendi porque ela mudou de assunto. Acho que realmente a magoaram.Fico pensando que tipo de idiota faz isso com uma menina,mulher,seja lá o que ela fosse.
Enquanto ela vasculhava a bolsa a procura do objeto que gostaria de me dar,percebi que tirou um caderno e uma caneta.
"Toma, escreve para ela. Minha mãe disse que alivia a dor."
Eu a olhei e sorri. Ela se levantou.
"Enquanto você vai pensando no que dizer a sua ex-futura-mulher, eu vou descansar.Tive um dia cheio.Quando terminar,faça um barquinho e jogue no mar.Vai te ajudar bastante,Júlio. Eu sei que vai. Espero que quando eu acordar você ainda esteja aqui,já são quatro horas da manhã!" Ela riu, e me deu um beijo no rosto e um abraço. Seu cheiro era uma mistura de menta, e outro que eu não sabia o nome,acho que era algum cheiro de flor. Combinava com ela.
Não consegui escrever sobre a Heloísa. Nem uma linha sequer. Em compensação os olhos de Valentina não me saíam da cabeça.
Essa era a verdade: Eu tinha enlouquecido.
Como eu consegui me encantar em uma noite com uma mulher se eu não havia conseguido me encantar de tal forma com todas as outras que surgiram antes dela?Eu peguei o papel,decidido a ir embora e deixar apenas a caneta,mas queria escrever algo pra ela. Ela me escutou aquela noite inteira, e não reclamou, e nem bocejou.

Ao acordar na manhã seguinte, abri a lona da barraca em que me instalei e para minha surpresa Júlio não estava mais lá. Não entendi porque ele foi embora,achei que ele tivesse gostado de conversar comigo.
"Ah,parabéns Valentina,mais um homem que você espanta por tanto falar de si mesma. É bom pra aprender,menina."
Falei em alto e bom som. Estava triste, tinha acabado de me decepcionar com um cara,e queria mesmo era morar na praia. Considerando o fato que o cara está namorando a minha amiga, e colega de casa,Luciana. Eu me pergunto todos os dias porque ele me enganou de forma tão brutal, e me fez depositar nele confiança e amor,sendo que não estava disposto a me dar isso de volta. Me senti uma idiota,dançando uma valsa vienense sozinha,só comigo. O meu par havia desaparecido misteriosamente. Vontade de bater no quarto dela e falar "Um momento,gostaria de falar com o João,por favor."
E falar tudo o que está engasgado bem aqui. Acho que as pessoas que maltratam nosso coração não têm ideia de que por trás daquele rosto saudável estão alguns traumas,algumas dores, e que sinceramente,não é necessária mais nenhuma dor em nossa vida.
Já havia passado o 'grilo' do qual eu estava me queixando,mas não sei. Eu deveria parar de ser idiota. Eu me senti idiota com o Júlio ontem. Ele parece ser tão especial,e infelizmente encontrou a mulher errada. Acho péssimo quando a hora é certa,mas a pessoa,errada. Em cada palavra que ele disse eu me encaixei perfeitamente. Não quis contar do meu drama infantil porque estava cansada de construir e demolir fantasias.Eu destruía meus sonhos iludidos de amor com a mesma facilidade que os construía.Mentira.
Era incrivelmente mais fácil construir do que destruir. Ao contrário dos prédios e casas, que demoravam alguns meses para serem construídos, e apenas horas para virarem escombros.
Não sei porque Júlio fez com que eu sentisse meu coração doer e aliviar ontem. Ele é realmente um cara especial,mas eu deveria estar sofrendo feito louca, se bem conheço todo meu processo de demolir fantasias. E demora pouco mais do que uma noite para pensar em um cara antes de dormir. Mas alguma coisa nos olhos azuis dele me lembrava algo bom. Algo feliz. Era a própria tristeza e felicidade líquidas,injetados nos olhos dele.
Loucura.
Esquece,Valentina.
Enquanto pensava sobre o quanto a minha vida estava bagunçada e infeliz,quase pisei em um barquinho de papel que estava na areia, em frente a barraca, com a minha caneta dentro.
" Valentina, 
Você me pediu para escrever sobre a minha ex-futura-mulher,mas a verdade é que eu não consegui deixar de pensar em você. Você me encantou da forma mais bonita, e eu senti meu coração tremer e doer enquanto falava com você.Como se ele estivesse sendo lavado, e tenho inveja de quem convive com toda a sua luz diariamente. Eu juro que gostaria de dizer que gostaria de ser um desses poucos,mas não consigo olhar para sua boca e não pensar em beijá-la.Seus olhos quase ganham do seu sorriso.Eu disse quase. Seus olhos são lindos, e eu nunca vou me esquecer deles. E nem dessa noite. Saiba que pensei em te beijar todo momento,você é realmente linda. Não sabia se deveria beijá-la,na verdade,eu queria conhecê-la melhor e também queria beijar seus lábios rosados. Eu me sinto envergonhado de falar isso,mas o que aconteceu ontem/hoje com você não foi normal.Não estou acostumado a me encantar tão rápido com alguém.Perdão por essa despedida um tanto quanto grotesca,espero te ver algum dia,com o coração cicatrizado. E, de verdade, espero que você ame muito alguém.Creio que você nasceu para propagar amor aos outros. Você me deu amor sem ao menos perceber. Obrigada. 
Júlio."

Eu não conseguia esboçar minha emoção nesse momento,acho que eu queria chorar.Eu não acredito que ele sentiu o mesmo por mim. E eu não acredito que ele foi embora, e eu ao menos nem posso procurá-lo porque aparentemente ele é um estranho para mim.
Sorte.
Refiz o barquinho, e o beijei. Desejei com toda a força que Júlio voltasse para aquele mesmo ponto na praia. E que eu estivesse ali de novo. E que dessa vez não houvesse dor alguma para atrapalhar, ou algum pudor. Apenas eu, ele e o nosso amor. Nem sabia se poderia chamar aquilo de amor, mas aparentemente,sim. Era amor. E vai ser amor para sempre. Um amor de uma noite e que duraria para sempre.
O roçar da barba dele ao me abraçar era a única lembrança que eu me lembrava com tanta vivacidade que poderia chegar a sentir roçar no meu ombro.

"Não acredito Júlio,você se apaixonou por uma estranha,cara? O caso está grave mesmo."
"Se você a visse você ia entender, ela é linda Jeff! Lin-da! Entendeu? Linda."
"Eu entendo o que quer dizer linda,mas"
Jeff olhou para os lados,cabreiro.Estávamos na agência de publicidade que trabalhávamos, e toda discrição era pouco.As paredes tinham ouvidos.
"Mas o que você sentiu é atração.Não se ama alguém em uma noite."
"Eu a amei em uma noite, e não estou apaixonado só porque ela é linda, a alma dela é linda também."
"Ah,ótimo.Agora você conhece a alma dela também?"
"Conheço. E eu quero voltar a vê-la."
"Qual o nome dela?"
"Valentina."
"Até o nome dela é estranho cara, e pelo que você descreveu, ela usa dreads né? Deve ser uma dessas filhinhas de papai rebeldes,não é mulher para você. Aliás,mulher não né,menina."
"E desde quando você sabe qual é uma mulher pra mim?O meu coração ficou leve perto dela. Se você procura mulheres e vai conhecendo-as por meses até decidir de forma 'racional' qual é a melhor, como quem seleciona um destino de viagem, e não a mulher de sua vida, isso é problema seu, meu amigo. Eu escolho a mulher que faz meu coração leve, e que me faz ver as coisas de modo diferente."
"Bah,não vai adiantar nada que eu disser né?"
"Não."
"Então,ok.Escolha o que seu coração aí diz. Deixou pelo menos seu telefone com ela?"
"Não, eu apenas deixei um bilhete de despedida.Eu sei, fui um idiota.Mas eu estava confuso.Achava impossível me apaixonar por alguém em uma só noite, considerando que vi a mulher que eu amava com outro no mesmo dia. Estava confuso e triste."
"Eu entendo,cara,mas se passou uma semana já,pelo que você falou. Como vai fazer para reencontrá-la?"
"Desde que eu a conheci fui na praia todo dia à noite, no mesmo horário, e não a encontrei...Será que eu a perdi?"
"Não pense assim, se ela tiver que ser sua, ela vai ser.Seja daqui a um dia, ou um ano."
Dei um murro na mesa. Jeff se assustou.
"Eu não quero esperar um ano, eu a quero já!"
"Então vá à luta, e acampe na praia. Espere o tempo que for necessário,coma mal e durma pior ainda, dentro de uma barraca de lona horrível."
"Não dá para conversar com você,você é muito amargo,vai se apaixonar um dia também,vai ver só."
"Tá,tá.Agora a gente volta ao trabalho."

Sim,caro leitor, essa história é um pouco resumida e louca. Quase crua. Não sabia muito sobre Valentina, apenas que eu a queria para mim. Toda. Em todos os sentidos possíveis. Ela tinha que ser minha, e eu ia desejar morrer se não a tivesse só para mim.
Heloísa não passava de uma fumaça nas minhas lembranças. A cada dia o sorriso de Valentina aquela noite se fazia mais, e mais presente. Acho que passei a dividir minha cama com as lembranças dela, e com o cheiro de menta e flor.
Diferentemente da estratégia usada anteriormente, eu passei a voltar naquele ponto da praia de manhã,à tarde e à noite,naquele horário.
Dois meses se passaram, e eu já havia me acostumado com a ideia de que conviveria com a amarga ideia de não poder tê-la. Com certeza seria uma história bonita para contar para meus filhos, sobre a mulher mais misteriosa,linda e encantadora que eu já conheci. Provavelmente a mãe deles vai ser uma mulher normal, sem grandes brilhos. Mas vai ser honesta, e bonita. Linda era um adjetivo forte demais para dar à minha futura mulher, que não seria Valentina. A minha mulher seria comum, e eu seria infeliz.

"Vamos no churrasco do chefe,Júlio, você está estranho desde que conheceu aquela mulher,menina,sei lá."
"Eu não quero ir Jeff, é difícil entender?Eu quero ficar sozinho."
"Não vai adiantar você ficar sozinho desse jeito,ela não vai voltar.A Valentina NÃO vai voltar."
Confesso que ouvir aquelas palavras do meu melhor amigo me doeu um pouco.Eu estava esperando alguém 'fora de mim' dizer aquilo em voz alta.Não podia mais esperar tanto tempo para ficar normal de novo,teria que aprender a conviver com o vazio e com um destino mesquinho traçado à minha frente, igual 90% daquela cidade.
"Tá,cara...Vamos. Por que o chefe nos convidou para um churrasco?Ele nunca chama ninguém da Agência para nada."
"É verdade, mas a filha dele voltou de algum lugar,eu acho, e ele está feliz, sei lá.Só sei que vai ter comida de graça, e bebida de graça."
"Certo"
Me arrumei como quem vai a um velório, e não queria falar com ninguém.Estava triste e chateado,acho que nunca me senti assim em toda a minha vida. Valentina foi embora e pela primeira vez pensei que tivessem levado um pedaço de mim também.Ela é o tipo de mulher que é difícil de esquecer.

"Não acredito que vieram meus gênios criativos para cá!Venham, entrem!A festa está apenas começando!"
Eu dei um sorriso modesto.
"Valentina, venha cá conhecer meus amigos da Agência!"
Jeff me olhou com a mesma expressão de choque no rosto. Eu estava congelado.Eu acho que meu coração parou naquele segundo. Mas logo se descongelou,atrás daquele monte de gente, surge uma mulher com uma expressão um pouco cabisbaixa porém simpática. A minha mulher. Só minha.
Era ela!
Jeff me olhou como quem não acreditava, a descrição batia com a que eu havia dado.Mas ele quis perguntar apenas para conferir.
"E-e-ssa é a Valentina?"
Não pude responder.
Meu rosto se iluminou o mesmo tanto que o dela. Ela ficou com os olhos cheios d'água. Mas conseguiu sorrir com a mesma alegria de sempre,mesmo com seus olhos avisando que choraria.
"Por que você foi embora?"
"Eu fui para a Índia, papai apareceu com uma passagem no dia seguinte. Quando coloquei os pés em casa, minha amiga me entregou o envelope.Não acreditei. Dentro do envelope tinha um pedido de desculpas por ele não ter me apoiado com a minha carreira, e eu percebi que se eu negasse seria uma desfeita absurda. Fiquei fora esse tempo, só para perceber que o melhor estava aqui. Você mudou a minha vida em uma noite, e eu queria ter certeza se o que eu senti ali era verdadeiro.Fiz uma espécie de teste: Se eu voltasse e estivesse com o mesmo sentimento que tinha quando fui embora, já saberia."
"E você está com o mesmo sentimento?E você saberia o quê?"
Ela riu da minha ansiedade.
"O mesmo sentimento de amor incontido, que aparentemente eu ainda tinha alguma reserva secreta dentro de mim, e é o amor mais puro que eu já pensei em dar para alguém."
Eu sorri,não consegui evitar.Já estava leve de novo.Mas a minha curiosidade não deixou com que eu não perguntasse.
"E o que você saberia, amor?"
"Que é você,ora.Você é ele."
"Ele?"
"É ué!"
"Ele?"
"Ai Meu Deus.É Júlio, ele. O cara que eu tanto pensei mas que ainda não tinha rosto.Eu pensava muito em você,sabia?Mas você não tinha um rosto,ainda.E eu ouvia a sua risada dentro da minha,mas eu ainda não sabia como era a sua risada.E eu pensava em como seria quando eu te conhecesse,mas a verdade é que o que aconteceu entre nós superou minhas expectativas.Na verdade, agora, viver e sonhar não faz uma diferença tão absurda assim.Você é meu sonho real."

Com essas palavras do mais alto grau de pureza,me despeço. O resto não dá para contar.Viajamos muitas vezes depois. Tivemos nossa primeira noite de amor, e foi linda. Ela foi minha, o corpo dela se encaixava com o meu, e apesar de virgem, ela era a mulher mais linda que eu já pude ter nos meus braços. Minha mulher,minha menina.
Essa é a minha história de amor verdadeiro.

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